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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

RENASCER EM PRIMAVERA


Lá estou e ela também. Olha-me ameaçadoramente, impedindo-me de chegar à criança que está abandonada numa toalha brincando com algo ao redor. Sinto uma sensação profunda de abandono, como se fosse o bebê que ali está. A mulher, pálida e lívida, continua a me olhar fixamente como se não devesse estar ali e muito menos desejar aquela criança para lhe dar proteção.
Tenho vontade de me aproximar. Meu eu não me deixa juntamente com os olhos duros e fixos sobre mim. Sobe um pânico que vem dos pés e chega à cabeça até o último fio de cabelo. A criança mal percebe o confronto armado entre mim e a outra mulher. Entretanto, consigo igualmente sentir os primeiros medos adentrando o corpo do pequeno ser supostamente esquecido.
Tudo é nebuloso, pois estou revivendo situações guardadas em minha caixa preta. Desdobro-me nessas criaturas, mas é o meu corpo atual quem sente todas as conseqüências. Incrível imaginar que tudo o que vejo realmente um dia aconteceu.
Não estou em condições de julgamentos, na verdade ainda estou a minha procura em diversos entendimentos do que em curto tempo já vivenciei. Tenho apenas 28, mas a experiência me faz sentir uma densidade de alma sábia.
Tudo é muito relativo, posso estar enganada quanto à densidade de minha alma e só estar sentindo o peso concreto dessa situação abstrata que me vem à mente. Tudo o que lanço são palavras trêmulas e duvidantes do que possa ser a minha verdade.
Quanta pretensão... Minha verdade. Será que um dia a terei? As  luzes ao redor aos poucos se apagam e sou conduzida a uma velha casa de madeira. Sinto ser a idosa que outrora jovem me olhava fixamente em minha breve angústia de acolher uma criança. Desdobro-me nela e por vezes sou a própria. Acho que agora tenho noção do que é escrever um livro como narrador onisciente.
A criança se tornou uma linda garota adolescente, mas a indiferença da mulher idosa é repugnante, juntamente com a vida que leva aparentemente desprovida de alegrias. Dura e medonha como seus olhos e aparência. A menina é sempre esquecida e quase nunca é ouvida pela indiferença da mulher, sua avó.
A garota sentia falta da figura materna, mas esta havia morrido logo após seu nascimento, e a avó revoltada, assumia a criança embora não entendesse a morte precoce da filha. Inconscientemente culpava o pequeno ser como o culpado por suas amarguras.
Minha noção sobre tudo o que vejo é imprecisa, mas me deparo com uma escada que me leva ao sótão. Tento subir , porém como tudo está escuro ao redor tenho nova crise de pânico, pois pior que o medo do escuro é encontrar o homem que sempre se refugia lá e a quem tenho por marido. Rude violento, sempre resolveu tudo na base da violência.
Fui e continuo sendo vítima de suas mãos e gestos rudes. Ah, como amava minha filha... Com ela tudo parecia ter mais sentido. Como o ser Superior pôde me deixar com o que há de ruim... Poderia ser ele em vez de minha amada filha. Não faria falta.  Não faria mesmo. Mas só vejo um túnel onde não há meios de se chegar à luz.
Acho que uma hora teremos de encarar um duelo. Ou ele ou eu. A mulher é sempre a parte fraca da relação e não tenho meios de me livrar desse sufoco.
Desisto de subir as escadas. Vejo uma moça e um espelho também. Parece que tanto ela quanto eu somos um só ser. Os arrepios foram inevitáveis. Refugiei-me na cozinha onde uma chaleira com água apitava para fazer um chá.
Passei ou passamos longo tempo observando a fumaça do ferver da água. Embrenhamo-nos num universo sem tempo. Tivemos a dor e a alegria de perceber o quanto éramos hoje distintas e o quanto amadurecemos ou amadureci desse passado remoto.
O seu abandono era o mesmo da garota sem mãe e o mesmo que o meu tentando me encontrar nos labirintos de interrogações infinitas. Ela bem que poderia ter sido outra pessoa, mas caso isso acontecesse, nunca travaríamos esse contato feito no hoje, que agora já é tão passado quanto o início desse parágrafo.
Os insondáveis mistérios da alma não são lavados com água, pois somos feitos de terra e água, é na lama que reside o nascimento da mais bela flor. Cada vida uma possibilidade de florir num eterno estado de primavera.
Andreia Cunha









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