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domingo, 21 de agosto de 2011

ABORTO EM ABERTO



Novamente adentro naquele pensamento que retorna a minha mente e se forma com a cena outrora vista. Ali estava o quarto. Uma cama de casal com lençóis desarrumados, duas portas de guarda-roupa entreabertas, papéis no chão e algumas manchas de sangue que culminavam no centro da cama.

Na lembrança o que vejo é obscuro, sombrio e ondulante. Partes ainda têm certa nitidez, pois me tocaram profundamente enquanto ser participante da cena acima descrita. Era um caso que demandava investigação aguçada e consequentemente longa. Havia um teste de gravidez entre os papéis e o sangue. Senti-me invadido e invasor daquela intimidade que fatalmente seria vasculhada. Ao mesmo tempo uma frustração em ter de fazê-la. Sentia-me um espermatozoide adentrando a vagina que se recusa ao ato forçado.

Seria obrigado a vasculhar aquele fato expresso pela miséria humana e seu desespero aterrador num êxtase de atitude resultante em morte para quem o praticou. Adentraria somente a superfície daquele ser, jamais a verdade, pois a ela eu somente rodearia com suposições. A agulha no chão parecia cutucar-me e ferir-me. Tantos e tantos casos solucionados em meu vasto currículo e me deparava com minha fragilidade desconhecida até então. Eu parecia ser aquele feto ainda em formação.

Confesso que até aquele momento nada no ser humano me assustava. Já tinha me embrenhado por experiência na frieza em lidar com fatos mais críticos e cruéis. Anos se passaram e a cena ainda retorna com força, a mesma de uma contração, em minha mente que persiste no lembrar.

Nesses anos procurei entender o desfecho que ainda não me veio da qual entrei como personagem secundário na forma de investigador no fim daquela trama trágica. Por meio do meu trabalho conjecturei, analisei e tentei sintetizar suposições como se fossem fatos. O que obtive foram mais dúvidas e incertezas.

Olhava a beleza da moça. Nada indicava ares de tristeza. Era só vida e alegria. Um brilho resplandecente nos olhos. Não posso mais resistir nesta narrativa que se embola em palavras. Sou o pai, o pai e também o investigador. Era de meu neto que eu ficava órfão. Minha própria carne disforme e apodrecida vítimas dos piores selvagens que podem habitar o nosso ser.

Para mim, o caso sempre continuará como uma ferida exposta. Um aborto em aberto.

Andreia Cunha










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