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domingo, 8 de janeiro de 2012

TORNO RETORNO



Aquele era o meio a qual ainda me sustentava em vida. Não, não estava inteira. Em trapos e farrapos vivia em “pedicância” - pedindo e medigando. Tentava e com isso achava que fugia dos problemas. Na verdade, me anestesiava para o entendimento e o conhecimento a qual deveria aprender. Não queria análises e conclusões, queria somente um abrigo, um esconderijo aliado a um tanto de compreensão da criatura que era.

Objetivos? Não, não os possuía. Que objetivo ou sonho ou esperança poderia ter alguém que em meio ao abandono familiar, social e público não via mais que tantos outros zumbis alienados perambulantes pelas vielas desde pequena achando aquilo tudo normal?

Éramos massacrados pela segurança pública que se dizia aliada à ordem. Ordem? O que é isso? Nunca vi ordem em toda a minha vida! Minha ordem era na desordem, na sujeira e em todo aquele círculo doentio que girava em passantes e consumidores do objeto do desejo. Tudo o que pudesse sair daquela forma era algo que eu nem conhecia. Como cobrar de mim algo que nunca tinha tido acesso?

Tornei-me um deles. Meu cheiro era o cheiro daquela turba: fumaça, suor, urina, fezes devaneios, delírios e completa falta de responsabilidade com o que poderia ser a vida. Nem sabia que vivia! De que meu corpo era formado? Para que estava ali ou se tinha uma função, missão ou sei lá o quê? Nunca tive a chance de escolher a cabeça para pensar... Pior que animal, eu era um ser bestializado desde a infância com uma figura de mãe que nunca deixou aquela vida.

Só conheci aquilo. O correto, aliás, o que deveria fazer era trazer o que tinha que trazer e me alimentar do cheiro porque comida era algo raro. Comia bebia dormia e inebriava o odor da droga. Depois disso não sentia fome. Quando comia era por piedade ou por descaso de restaurantes com os restos de quem podia pagar.

Sabia da existência do dinheiro sim. Também sabia que para tê-lo teria que usar de manhas e artimanhas. Trabalho? Que trabalho? Minha atividade era tirar, retirar, roubar, iludibriar, pedir prostituir senão não tinha. Considerava isso trabalho. Já que de alguma forma eu existia, tinha que lutar para continuar. Eu era puro instinto – batia a fome, a necessidade de esquecer de não sei o quê, sumir era para saciar o dia que fazia as coisas.

Desconhecia a morte como tristeza. Desconhecia os rituais que se faz a um ser humano quando não se tem mais vida. Para mim, tanto fazia ser jogada numa cova, vala ou sei lá... Já era jogada excluída invisível e inexistente. Aceitava ser naquela condição e achava que alguns tinham e os outros tinham que tirar desses. Minha lei era a selva voraz e ferrenha. Um bicho era mais entendido da vida do que nós ali. E o que tínhamos de raciocínio era ainda mais consumido pela loucura da insana droga que nos consumia vivos.

Não estou mais nessa condição. Após anos peregrinando no inferno tanto na vida-morte quanto na morte-morte, percebo como tudo era cruel e mesquinho e em como as leis são leis até mesmo debaixo das condições mais humilhantes possíveis.

Meu desejo não é o de voltar, mas tenho dívidas a saldar que me tornam consciente dessa necessidade. Quero tentar, tentar modificar com tudo o que pude aprender dessa estranha situação em que vivem os homens materiais.

Não posso esquecer que matéria atrai matéria e que o esquecimento é a maior lei de todas as supremas leis para quem deseja consigo mesmo se reconciliar. Eis minha nova chance.

Andreia Cunha










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