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domingo, 29 de janeiro de 2012

O RISO DA VERDADE




“Quando a claridade diz: eu sou a escuridão, disse a verdade. 
Quando a escuridão diz: eu sou a claridade, não mente.”
Heiner Müller

Façam o que falo, mas não façam o que faço

Era uma vez...

Sim, esta história começa assim. Olhem, aliás, escutem, ou melhor, leiam (já que não me pronuncio com minhas palavras aéreas): e com atenção... Apesar do início medíocre, a história tem veracidade e quem não quiser acreditar, pelo menos saberá que em algum lugar algo do gênero pode realmente ter acontecido da maneira como foi contado, ou pelo menos de modo semelhante.

Portanto, deixo registrado aqui com selo reconhecido em cartório minha autenticidade e disso ninguém poderá me acusar. O pronome "me" representa meu ser enquanto narrador e não um enganador de mentes com falácias, sofismas envoltos em aparentes silogismos.

...Um rei. Havia um rei e era da França. Tinha em sua volta inúmeros ministros a qual delegava o poder de em voz alta propagar suas decisões sem que em público aparecesse. Preferia o contato com a plebe o mínimo possível. Sua decisão de se manter o máximo possível longe de seus súditos era por uma questão de respeito. Quanto mais difícil o contato, mais respeitoso e admirado seria por seus súditos.

Confesso que ele não se enganava quanto a isso, pois o povo o adorava apesar de sempre mentir quanto as suas decisões. Seus ministros tinham a política de que mentir era a melhor maneira de manter as massas quietas e tranquilas em seus casulos.

- Nada mais produtivo do que a mentira... Uma mentira bem mentida se transforma em uma autêntica verdade. Nada mais nocivo, corrosivo e corruptor do que falar a verdade para a multidão.

A seu ver, a verdade era o ser travestido com inúmeras capas e a mentira, enquanto declaradamente travestida, era mais verdadeira que a própria verdade que negava suas capas como ilusão.

E nisso era tão ardiloso que realmente o povo via sempre algo concreto como forma de comprovação da verdade a mentira contada. Para isso, escolhia o que o povo gostava e era sempre pelo gosto que pegava a maioria. Podiam ser jogos, distribuição de pão, benefícios e por aí ia.

Certa vez, fui escolhido para ser um dos ministros. Era novo ainda e sendo muito inteligente, o rei ouviu comentários e pediu para que me cercassem preparando para os estudos a qual devia passar para ocupar o cargo. Um banho de filosofia cínica e sobre os cínicos através dos tempos ajudaria na minha formação de Ministro do Rei.

Minha consciência precisava ser trabalhada e destituída das velhas normas para uma nova que me traria um novo EU.

Hoje, mediante minha retomada de consciência, a que considero verdadeira, percebo que um novo mim colou-se ao eu e passei a ser dúbio, ambíguo: dizia ao povo o que era mentira e passava a acreditar nela pelo fato de dizê-la tão verazmente quanto uma verdade.

Com o decorrer do tempo, passei a sofrer de algo estranho, pois nunca o soube como doença antes. O riso me tomava pela noite e desbragadamente acordava todos os Ministros do palácio mesmo que dormindo. Passei, então, a ser uma pedra no sapato do descanso alheio.

Fui analisado pelos melhores magos e médicos do Rei, afinal era o que melhor desempenhava a função. Estava prestes a ser o chefe de todo o Ministério. Passei a me analisar: o que afinal poderia ter desencadeado aquilo, entretanto foi o Ministro dos Magos que acertou no diagnóstico. Disse-me:

“ Ó louco, arquilouco, como é possível que em sua cabeça ruim se encontrem ideias tão justas misturadas com tanta extravagância”

A frase presente na obra de Denis Diderot soou como antídoto ao contrário. Passei a rir e ria tão loucamente que pensei que morreria de tanto rir.

Não conseguia pedir para parar aquilo, quando o Ministro  assim disse:

“ O que há de diabólico no riso que soa falso é que ele parodia aquilo que há de melhor: a reconciliação.” ( Theodor Adorno)

Parei instantaneamente de rir. As verdadeiras palavras como antídoto me fizeram perceber a reconciliação de meu eu e meu mim. Curado, vi com mais nitidez que jamais poderia permanecer naquele Ministério e nem naquele lugar. Supostamente, o vírus da verdade havia me contaminado letalmente para as funções a qual exigiam de mim.

Teria de fugir antes de levarem o verdadeiro diagnóstico ao Rei. Caso contrário, seria morto em algum esconderijo do palácio, pois em praça pública ficaria muito evidente ao povo certas verdades tão cruéis.

Não relatarei os detalhes, mas consegui e com a ajuda do Ministro dos Magos também conhecedor da verdade.

Hoje, vivo em um tonel peregrinando pelo mundo que é meu verdadeiro lar. Não pertenço a um local, sinto-me estrangeiro de qualquer terra. Porém o que gostaria de ter feito e não o fiz por falta de tempo foi justamente uma pergunta ao mago que me ajudou.

- Por que sendo um dos detentores da verdade sobre aquele reino, ele ainda assim permaneceu naquele local?

“Uma rebelião simbólica em uma cidade simbólica, 
apenas as torturas eram verdadeiras.”
 Jean Paul Sartre

Andreia Cunha





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