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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

RUMINANTE GOMA, A VIDA





Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. 
Não se preocupe em entender,
viver ultrapassa qualquer entendimento.
Clarice Lispector

Passou por mim de relance e a única coisa que vi foi seu chiclete rolando de um canto ao outro da boca que o mastigava aberta. Aquela inquietante sensação me fez sentir humana e creio ter esboçado no rosto a imagem de nojo por ter tido o desprazer de ver tal cena. Ouvi um não pelo caminho, mas a cena não me saia da cabeça. 

Queria não ter de relembrá-la, mas foi além dos meus limites. Algo em mim também ruminava e eu a queria esquecer. Esquecer como se esquece naturalmente os primeiros anos de vida, embora estes sejam talvez os mais prazerosos de um ser vivente.

Eu me sabia detentora dessa situação, por isso, perdoei a mulher que por mim passou praticando aquele ato quase que obsceno a meu ver. Provavelmente, não era uma simples coincidência. Haveria um motivo para resgatar as areias deitadas no lago profundo do meu ser.

Nesse instante na qual escrevo, me debato com essa inquietante imagem que sou e a qual tento desvendar como se fosse arquiteta de minha própria figura enquanto escultura divina. Muita pretensão a minha tentar ser um deus que cria um mundo com palavras mesmo que ínfimo em sua grandeza espacial. A Deus bastou um verbo: Haja. A mim como sou reles mortal tenho que me contentar com essas tantas letras que se unem na ânsia de um significado que creio estar presente em minhas entranhas.

Sinto-me e sei que sou estranha, pois de tempos em tempos a maré muda e sou levada por esses fluxos e refluxos das águas que me invadem. Se sou pedra, as águas que me tomam criam espaços e funduras esculpindo com o tempo este ser que nunca é, mas sempre será a possibilidade de um vir a ser, pois  o que hoje é já foi e não volta, a não ser  pela memória.

Minha desesperadora condição de escultura sendo esculpida diz que o que me resta é render-me, entregar-me aos cortes e talhos da água paciente enquanto a goma em boca alheia perde o gosto e desce goela abaixo causando sensação de estar se alimentando nesse regurgitar ruminante da constante criação sendo recriada.

Andreia Cunha









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