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quinta-feira, 16 de junho de 2011

MONÓLOGO MODERNO

MONÓLOGO MODERNO

Vivia agitado com os compromissos pendentes, sempre para ontem. Tinha se acostumado a esse ritmo, embora internamente achasse que não deveria. Sentia-se uma fera domada e que agora já não se recordava tanto dos instintos primordiais.
O esquecimento de seu outro eu em conta-gotas o incomodava. Por vezes, regurgitava-lhe na mente um bolo ácido como se fosse um alimento mal recebido pelo estômago.
Haveria uma reunião na empresa e muita ‘lavação de roupa suja’ estaria em jogo. Sabia de antemão que nessas ocasiões todo e qualquer aparelho eletrônico seria inconveniente se estivesse ligado. Ordens expressas dos superiores que por uma escala descendente não queriam levar broncas devido ao comportamento de um subordinado.
Tantos cuidados e ele, por cuidados familiares, deixou seu celular somente no vibra. Motivo: seu filho estava doente e as preocupações eram consideráveis a ponto de justificar a atitude incorreta para o momento. Na correria, igualmente esqueceu de avisar seu chefe.
Sendo a vida um mar de imprevistos, imagine, o celular vibrou em meio a um silêncio sepulcral na hora em que o boss expunha o motivo do encontro. Por menor que fosse, o ruído não passou despercebido e todos os  olhares se voltaram para a direção de onde o som vinha. Entre a agitação de “o meu não é!”, “parece vir daquela direção...” Ele tentou se explicar, pediu desculpas, licença para sair e atender o celular mediante a necessidade do ocorrido.
Aquele momento parecia eterno por conta de todos os seus pedidos em meio a olhares tão hostis e fuzilantes.
O número era o de sua casa. A expectativa era grande e preocupante. Atendera. Uma voz em assobio desafinado respondeu. Reconhecia vagamente a voz, mas não acreditava que alguém de sua casa pudesse cometer atitude tão descabida.Desligou furioso, mas para desencargo de consciência, retornou a ligação.
Uma voz masculina respondeu:
- Até que enfim! Pensei que não retornaria!
- (...) Quem é você e o que faz em minha casa?
- Ora, ora, não reconhece mais esta voz? Está muito mal de ouvido, hein!
- Nunca fui bom de ouvido...
A voz era familiar e essa sensação o incomodava ainda mais.
- Será que você anda tão anestesiado dos sentidos que não reconhece mais a sua própria voz?
Ao ouvir o “sua própria voz” um susto assomou-se em seu ser em um gélido calafrio.
- Como “minha própria voz?”
- Eu sou você – o seu eu primordial adormecido, anestesiado melhor dizendo.
Não podia acreditar, não via a imagem, mas também não podia negar. Tudo era muito seu. Sentia algo de pessoal naquele ser a ponto de não desacreditar ser ele mesmo. Para se situar, fez-lhe diversas perguntas sobre particularidades. Todas respondidas com riqueza de detalhes.
Pela insensatez do fato não mais se importava com a reunião. Estava atônito com a possibilidade do desdobramento do seu eu.
- Como está “nosso filho”?
Admirou-se com o termo “nosso”. Percebia-se perdido com as palavras.
- Olhe, ou melhor, OUÇA, ele está excelente. Quem está doente é VOCÊ e isso já vem de longa data. Há algum tempo, seus pensamentos permitiram-me espaço para sair e hoje ganhei vida para te orientar.
Nesse ínterim, o da reunião recapitulou sua vida e viu o quanto estava enjaulando-se em espaços cada vez menores. Terminaria por sufocar-se nas paredes movediças que ele mesmo estava construindo e se deixando comprimir. Poderia ser sandice, entretanto não podia deixar de constatar a veracidade do que o do celular transmitia.
Pagaria um preço por aquela audácia do vibrar do celular e pelas outras atitudes. Mas por enquanto, aquela verdade lhe bastava e preenchia tanto seu ser que já sentia as paredes movediças se distanciando do pouco que restava de seu espaço interior.
Esperava ver-se, abraçar-se não sabia se seria possível. Saiu dali sem autorizações assobiando desafinadamente como sabia para casa. Sua fome era intensa e era ela que deveria ser primeiramente saciada. Tinha um encontro e este sim não poderia ser adiado.

Andreia Cunha













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