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sexta-feira, 10 de junho de 2011

Mal Dita Dor

D'eus

Só aceitei o convite porque a intenção era a de machucar-me. Considerava-me merecedor daquilo, por isso o fiz com prazer.
Meus princípios primordiais repudiavam fazer parte daquele ato, porém naquele momento a dor me era muito mais satisfatória. A maioria dos que me acompanhavam não entendiam o porquê da minha atitude. Também a todos não fiz questão de explicar. A mim me bastava saber o quanto estaria me afetando e o que seria dali por diante com o que restaria de mim.
Estava numa fase na qual considerava a dor como princípio da maturidade. A que até então não tinha. Caso fosse ator e tivesse que me atirar contra a parede para ser convincente eu o faria sem pensar nas conseqüências. Meu nível de entrega a dor que procurava era intenso e latejante, julgava que isso me traria crescimento. Ninguém compreenderia. Acho que trazia meu passado para o presente e considerava necessário sofrer para não reviver. Algo surreal, mas plausível em minha mente.
Cultuava a aceitação do convite como um ritual religioso, um batismo e um renascimento daquilo que considerava meus pecados. Havia um sádico nas camadas internas de minha pele. As vísceras pulsavam por um ato violento contra mim mesmo...
Obtive a glória do poder pelas mãos paternas, portanto não tive de lutar para alcançá-lo. Este me foi concedido pelo sangue, o mesmo que almejo derramar de minhas veias. Via-me em espelhos como um ser superior na qual os outros deveriam venerar. Ao assumir as rédeas do povo, tomei-os por cavalos que puxavam a carruagem que me conduzia. Percebi que me conduzi tão desenfreadamente quanto às rédeas loucas que movimentavam o andar da carruagem.
Julguei-me um deus e por ter poder e capital, a maioria me “amava” desse jeito. Um amor cego que me levou ao precipício. Não reclamo, pois foi nesse mesmo precipício que passei a perceber noções da altura e da amplitude dos estragos que cometi pelos caminhos até chegar aqui.
Foi-me necessário subir as montanhas para perceber a profundidade impiedosa que cavei internamente com minhas próprias mãos. Os que eram contra mim não mereciam viver para respirar o mesmo ar. Suas cabeças eram prêmios a serem expostos aos insurgentes que ainda quisessem tentar a façanha.
Tive muitos seguidores, aduladores, nenhum amigo, porém isso não era importante. Era jovem, belo, vigoroso junto com tantos outros atributos que o tempo consome.
Foi à beira do penhasco que tomei noção do rumo que me dei juntamente com meu povo (os cavalos sob rédeas curtas).
Aquela era a hora sem sombra e parecia clarear minhas idéias de tudo o que via e havia feito pela ignorância do poder hereditário e mal administrado em que me encontrava. Quanto mais aquela claridade me alumiava o corpo mais almejava a dor como alívio. Enxergava, mas não sei o quanto realmente via. Num imenso desespero, liberei o grunhido do animalo pré-histórico que me habitava. Era o puro instinto lutando com minha razão perante o que se passava do meu viver. Um turbilhão mental dava a nítida impressão de que o tampão fora tirado e todo o líquido se esvaía em espirais ralo abaixo. Devido ao sol forte, senti vertigem e só ouvi o eco-grunhido como resposta.
Embora o tempo passasse e me soubesse como Áltheon, filho de Makhradiz nas montanhas de Parsilea, em relação a ele me sentia suspenso, fora de sua linha nas alturas observando tudo o que ficou para trás do precipício.
Desdobrava-me porque pela hora já era possível ver sombras. Eu me era a sombra de mim e meu eu, uma estátua. A primeira vez que a sombra é mais que o próprio ser. Só na luz a sombra existe. Como estátua, lancei-me o convite e como sombra o aceitei para a eternidade aérea da profunda dor que precisava sentir. Empurrei-me precipício abaixo.

Andreia Cunha


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