ESCOLHA
Catava o feijão como de costume, porém o fazia, naquele dia, mais cedo... Enganara-se na hora?... Talvez... Embora não houvesse nenhum tipo de compromisso maior que a tirasse da rotina...
Seus pensamentos dançavam uma valsa girante... Era a fortuna acumulada, a família que a ignorava e a falta do marido que nunca amara, mas aprendera a apreciar por causa da riqueza que possuía... Sentia-se culpada por nunca tê-lo amado e mesmo assim ter convivido mais de 60 anos com aquele homem que morrera em uma praça pública no dia em que compraria duas passagens para a Europa... Também teria que falar com seus advogados sobre as pousadas e os aluguéis dos imóveis que, agora, a sustentavam: “seu uso fruto” como chamava...
Agitava a mente com essas turbulências de pensamentos voadores enquanto pegava com cuidado duas xícaras de feijão para em seguida escolhe-los como aprendera há muito com a mãe que a ensinara em sua juventude...
Colocava-os em uma bacia e separava os furados, quebrados e encarunchados, jogando-os no chão... Logo, aparecia a cadela que adorava brincar com as bolinhas rolantes...
Carunchos... Começou a perceber que aquele feijão estava com muitos deles...
Pegou-se rindo da palavra “CARUNCHO”... Feijão en ca run cha do... Esboçou um sorrisinho no canto da boca... Tinha prazer em catar aqueles bichinhos e esmaga-los entre as unhas... Escutando o estalo típico... TREC.
Adorava vê-los sofrendo em sua pequena existência feito moluscos em conchas... Eles faziam do feijão seu lar e sua comida... Alimentavam-se da própria casa que os acolhia... Catou bem uns vinte... Nesta altura, esquecera das preocupações... Tornara-se criança destruindo o brinquedo... Uma caçadora de carunchos armada com unhas e dentes... Nem parecia ter seus 77 anos de idade...Com lucidez, apesar de alguns esquecimentos corriqueiros...
Aquela brincadeira a fez sentir-se viva a tal ponto de querer guardá-los para si, só para serem seus brinquedinhos favoritos... Matar carunchos era um meio de esquecer as culpas, os filhos e netos que a desprezavam, embora morassem num mesmo local, e também perceber que o amor não se aprisiona...
Antes liberta... Coisa que nunca soube fazer por despreparo de si perante as durezas da vida... Será que os carunchos formam famílias? Como seriam seus lares sabendo que logo destruiriam pelo apetite voraz? AiAiAi...
Quanto pensamento besta!!! Refletiu tentando voltar à normalidade do ato que praticava: catar feijão... Quando retornou à normalidade, sentiu que em si havia uma mudança... Seu corpo estava diferente... Não possuía pele, mas uma casca amarronzada... Sentiu-se também mais leve e com mais mãos (?)... Tinha dificuldade em andar com duas pernas... Pernas(?).. Olhava-as agora e mais pareciam patinhas curtas... Não acreditou ao olhar-se no espelho...
ESPANTO!!! Tornara-se um caruncho enorme... E agora? Será que toda sua existência tinha sido essa e não sabia?! Enlouquecera e perdera a lucidez por completo??? Tentou refletir, mas em seu novo corpo, o cérebro era ínfimo e suas palavras quase que inexistentes... Doía-lhe muito tentar pensar... Resolveu, por fim, permanecer assim, pois só ela mesma via essa transfiguração...
Para os outros, continuava a mesma D. Joaninha. Todos os dias os mesmos cumprimentos e perguntas... Então, passou a aceitar aquela condição secreta de caruncho escondido na capa de idosa... Afinal, só ela via... Só e somente ela, mais ninguém...
Andreia Cunha
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