Bem aventurados vós... Ela não conseguia passar daquele
início de frase. Num ponto de ônibus juntamente com a mão materna segurando a
sua esperava o tal que a levaria para casa. Seria pelo caminho do mar, no
entanto por ser criança e por descuido em confusão entrou no que fazia o trajeto
oposto.
Agora já era. Subira no ônibus que passaria por um elevado enquanto
pensava consigo.
- Pena, daqui não posso nem ao menos vislumbrar o mar.
Ledo engano quando percebeu que nas alturas que a levariam
ao centro da cidade começou a ver a ilha e a arrebentação das ondas mesmo que
de muito longe; seus olhos não acreditavam. Antes não dava para ver e naquele
momento via-se nitidamente. Demoraria mais para chegar por conta do erro. Mas a
bela vista a confortava do suposto engano que a faria viajar horas a mais.
Não entendia porque a pressa, era apenas uma criança quando
entrou no transporte pelas mãos maternas. Aliás, onde estaria ela agora?
Entretida com a possibilidade de ver o mar esqueceu-se dos vínculos familiares.
Há tempos não pegava aquele caminho, por certo muita coisa
nova a surpreenderia. Dito e feito. Entre os momentos em que o mar ficava
encoberto, viam-se montanhas, pedras, rios e muita natureza. Encontrou um lugar
confortável para se sentar, pois até então era de pé que estava, sentou-se bem
à frente próximo ao motorista nos bancos mais elevados.
Após o deslumbramento era o livro que tentava pegar para
quem sabe destravar a leitura inicial. Uma série de preocupações lhe sondavam a
memória talvez por isso a falta de concentração no ato de ler além do ‘bem
aventurados vós... ’
Sentou-se no chão como criança que achava ainda ser e
apoiou-se no banco para desenhar. Melhor que ficar lutando com algo que não
atava nem desatava. Ficou ali por pouco tempo. Em meio a curvas e declives o
ônibus agora tomaria o caminho da praia. Ela não queria perder as novidades do
caminho há tanto esquecido.
E como era belo! Não eram ruas, eram vielas em que somente
de um lado tinham moradias, do outro um pequeno muro deixava ver o encontro da
montanha com o mar cada vez mais próximo. Eram curvas belas e desajeitadas. Do
ainda alto se viam as pedras sendo encharcadas pelas ondas altas da maré cheia.
Um espetáculo! Reparou que
esculpido deitado numa imensa pedra havia um deus mutilado talvez pelo mar em
fúria de tempos em tempos. Sim, era um deus mitológico. Faltavam-lhe pernas e
parte dos braços parecendo pedra decomposta em areia sendo consumida pela força
da água.
Aquela imagem não lhe saía da
mente apesar de já estarem à beira mar. Era possível ver pessoas indo em
direção à praia para um típico banho de sol. Felicidade era a palavra e o
sentimento que a tomava por estar chegando ao lar.
-Nem demorou tanto apesar do
erro.
Nisso se sentiu gratificada,
mesmo com o que considerava errado a princípio, havia aprendido algo novo.
Vislumbrara o belo na sublime figura do mar.
Descia adulta em meio a uma
festa. Pessoas escalavam um morro em busca de um símbolo fluorescente deixado
justamente para desafio dos aventureiros. Os que conseguissem a façanha teriam
um prêmio em dinheiro. Mas para tanto teriam além de resgatar o amuleto
deixá-lo em evidência para que todos pudessem contemplar o valor daquele
símbolo.
Vi-o. Era verde vivo iluminado.
Fora colocado no poste por uma mulher que o recebeu das mãos de um amigo.
Contente pela conquista. Senti-me feliz embora não fosse participante de fato,
só por estar ali aplaudindo a arte em ato de coragem já me fazia valer a pena
todo o erro, todo o acerto, toda a vida em movimento.
Após tudo isso, o livro que
carregava caiu aberto. Consegui ler a tal frase sem mistérios.
‘Bem aventurados vós que mesmo de olhos fechados conseguem
vislumbrar bem como dissipar seus medos e seus mitos.’
andreiACunha