Tinha tido mais um daqueles lampejos de ausência que tanto a incomodavam. A sensação era a de se diluir com o universo e a de não mais se possuir.
- ... um pincel com tinta que posto em água se desfaz e se mistura com o líquido da vida. É mais ou menos isso, a melhor maneira de explicar o que se passa.
Com essas palavras tentava explicar o que lhe sucedera no dia anterior. Por questão de minutos, poderia não estar mais nessa vida. Essa ausência maior que as demais, antes não passavam de segundos, a deixava inquieta, pois foi nesse ínterim que tomou quase que uma cartela de remédio para o controle da pressão arterial.
... quando dei por mim, percebi que era loucura o que fazia. Já estava suando frio e meio mole. Só tive tempo para pensar e agir ao mesmo tempo. Não dava para fazer um de cada. Iria sucumbir caso não agisse e rápido...
Provocou o vômito até sentir que esvaziava o estômago enquanto a mente procurava o motivo real daquilo tudo ter chegado àquele ponto crucial.
... Jamais pensei em suicídio como resolução de problemas. Tendo conhecimento das leis da vida e como a alma sofre com tais conseqüências, tenho em mim que isso é insano demais para ter me acontecido...
Não sabia mais como explicar, pois nem mesmo ela se entendia. Uma ausência de minutos e a vida jogada fora como papel descartável. Desconfiava que teria o medo como aliado e que a vida estava lhe pregando peças de terror.
... então, como disse: não me era, não me estava. E só agi porque voltei a mim em corpo e consciência. Era como se repetisse o ato diversas vezes para provar que o fazia me certificava de que tomava o comprimido.
Uma fita obsoleta de VHS que ia e parava no mesmo ponto: o retirar o comprimido,colocá-lo na mão, virá-lo na boca e engoli-lo com água. Mecânico e repetitivo como máquina enguiçada.
A amiga a observava e a ouvia atenta. Já tivera também lampejos do tipo. Partilhavam da mesma situação. Ambas não sabiam do que se tratava.
- ...acho que estamos mecanizadas pelo sistema e os pinos estão frouxos.
- ... você ri e brinca porque não foi tão sério a ponto de quase se matar.
Estavam numa feira pobre e vazia na praia onde alguns locais nem tinham vendedores. Era ali o verdadeiro momento de vida vivida sem a sobrecarga da lida diária.
Como se livrar das ausências era o grande problema, pois as ausências mecanizadas é que lhe garantiam o sustento do corpo e pelo jeito também o deitar da morte.
Andreia Cunha
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