Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos
Eram os idos de uma época distante e tudo ainda era visto
com certa desconfiança, isto é, qualquer pensamento que fugisse aos padrões
impostos pela grande Controladora não era algo bem vindo e deveria ser
eliminado. No entanto, fato era que alguns não se contentavam com os preceitos
da grande Controladora e se via em grandes problemas para pensar e pôr suas
ideias em prática.
Geralmente a prática ficava apenas no pensamento ou bem
escuso em papeis, material bem difícil de se obter.
Apesar dos contratempos, um homem simples resolveu abdicar
das regalias de ter a vida salva pela Controladora e pôs-se a pensar, pois sua
mente não se continha nos moldes tradicionais impostos pelo sistema. Essa era
sua dor e também o seu prazer. Era no seu escondido do mundo que encontrava
enorme vontade de continuar a vida e ter nela um sentido para o tudo que se
sucedia ao redor. Mais que normas e regras, ele precisava de sentido: o seu
experienciado mais do que o apenas falado como ideal.
Aprendera a ler parte com um monge, seu tio, e o restante
sozinho mediante alguns livros que por vezes chegava a suas mãos. Mágico
momento era o de se esconder entre os animais para decifrar o que o papel
guardava como mistério. Pensava um dia em poder colocar as suas joias também no
papel. E não tardou mesmo em praticar tal ato.
Sua mente voava no que lia. Saber das estrelas e do universo
dito como infinito apesar das controvérsia da Controladora era algo que o
fascinava. “Como algo pode não ter fim?”
E foi nos confins do sem fim que seu corpo se embrenhou para
explicar o que sentia borbulhando em sua alma prestes a derramar caso não colocasse
as ideias em prática. “Via Láctea...” Foram as primeiras palavras que lhe
perturbavam e semeavam sua terra mental.
Tudo é leite. O mais racional da Criação é o leite. Isso o
alimentava como essência para o manter vivo nas suas loucuras. Por que nãose pensava
numa figura materna criadora, visto que é da mulher que o homem nasce? Algo
deveria estar errado na história da criação colocando o homem como centro. E a
tal via láctea comprovava seus pensares.
“Se tudo parte do leite nada mais natural que exista uma
figura materna!” Nisso calcava toda sua
teoria. Havia uma mulher escondida na Criação e isso para ele era mais do que o
óbvio em luzes na escuridão.
Por dias, se via fazendo conjecturas, “mas o que seriam os
homens nesse contexto, visto que moravam dentro dessa via de leite
racionalmente criador que alimentava os sereszinhos habitantes desse tal
universo?’
Julgou: do leite se faz tanta coisa... Talvez estejamos
dentro de um imenso queijo! A forma espiral da via láctea dá a ideia de que
algo se agita como se numa panela tudo estivesse girando.
Queijo! Essa é a resposta... Eureka – proferiu as palavras
gregas como solução para seu embate mental. Somos as bactérias, os organismos
que se formaram a partir desse queijo em formação...
Sua felicidade era imensa em conseguir algo tão concreto
quanto as ideias da Controladora para ele sem sentido.
Não conseguia se conter com os dias se passando, nessa
teoria tudo se encaixava, é claro que ele tinha medo de seu entusiasmo, mas no
fundo se sentia tão puro e limpo do que aceitar tudo em mudez eterna que aos
poucos foi deixando escapar o motivo de tanta alegria para os demais que já o
olhavam com desconfiança de que algo o havia causado a tal felicidade extrema.
Nos tempos da grande Controladora tudo deveria ser moderado
e o que fugisse a essa regra primordial deveria ser profundamente investigado.
E isso logo lhe causou problemas, pois esconder algo tão humanamente verdadeiro
era quase impossível visto que seus olhos brilhavam e exaltavam seu
conhecimento muito mais abrangente do que a Detentora da verdade.
Ao ser pego numa noite de lua cheia foi logo acusado de
bruxaria visto que livros profanos foram encontrados nos aposentos mais
secretos de seu lar humilde. Sentiu-se caçado e de fato era a caça da vez.
Muitos já estavam nessa triste situação por muito menos. Com ele não seria
diferente.
No entanto, sentia-se ainda assim feliz por pensar além dos
moldes impostos. Pensar para ele era algo que valeria até a pena do morrer
queimado em público: o que de fato aconteceu logo após o terrível julgamento
seguido por diversos acusadores que o chamavam de bruxo com palavras torpes
mesmo com sua antiga ajuda pela vizinhança agora esquecida de suas benesses.
Foi em imensas labaredas que vislumbrou o queijo queimando
como em churrasco sendo derretido para se unir ao Todo lácteo que havia visualizado
em seus pensamentos.
A grande Controladora vencia assim mais uma vez os pensares
vis que ousavam questionar a Suprema Verdade dos fatos.
Andreia Cunha
Sugestão de leitura: o queijo e os vermes de Carlo Ginzburg.
Andreia Cunha
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