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sábado, 29 de setembro de 2012

O QUEIJO E A VIA LÁCTEA




Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos



Eram os idos de uma época distante e tudo ainda era visto com certa desconfiança, isto é, qualquer pensamento que fugisse aos padrões impostos pela grande Controladora não era algo bem vindo e deveria ser eliminado. No entanto, fato era que alguns não se contentavam com os preceitos da grande Controladora e se via em grandes problemas para pensar e pôr suas ideias em prática. 

Geralmente a prática ficava apenas no pensamento ou bem escuso em papeis, material bem difícil de se obter.

Apesar dos contratempos, um homem simples resolveu abdicar das regalias de ter a vida salva pela Controladora e pôs-se a pensar, pois sua mente não se continha nos moldes tradicionais impostos pelo sistema. Essa era sua dor e também o seu prazer. Era no seu escondido do mundo que encontrava enorme vontade de continuar a vida e ter nela um sentido para o tudo que se sucedia ao redor. Mais que normas e regras, ele precisava de sentido: o seu experienciado mais do que o apenas falado como ideal.

Aprendera a ler parte com um monge, seu tio, e o restante sozinho mediante alguns livros que por vezes chegava a suas mãos. Mágico momento era o de se esconder entre os animais para decifrar o que o papel guardava como mistério. Pensava um dia em poder colocar as suas joias também no papel. E não tardou mesmo em praticar tal ato.

Sua mente voava no que lia. Saber das estrelas e do universo dito como infinito apesar das controvérsia da Controladora era algo que o fascinava. “Como algo pode não ter fim?”

E foi nos confins do sem fim que seu corpo se embrenhou para explicar o que sentia borbulhando em sua alma prestes a derramar caso não colocasse as ideias em prática. “Via Láctea...” Foram as primeiras palavras que lhe perturbavam e semeavam sua terra mental.

Tudo é leite. O mais racional da Criação é o leite. Isso o alimentava como essência para o manter vivo nas suas loucuras. Por que nãose pensava numa figura materna criadora, visto que é da mulher que o homem nasce? Algo deveria estar errado na história da criação colocando o homem como centro. E a tal via láctea comprovava seus pensares.

“Se tudo parte do leite nada mais natural que exista uma figura materna!”  Nisso calcava toda sua teoria. Havia uma mulher escondida na Criação e isso para ele era mais do que o óbvio em luzes na escuridão.

Por dias, se via fazendo conjecturas, “mas o que seriam os homens nesse contexto, visto que moravam dentro dessa via de leite racionalmente criador que alimentava os sereszinhos habitantes desse tal universo?’

Julgou: do leite se faz tanta coisa... Talvez estejamos dentro de um imenso queijo! A forma espiral da via láctea dá a ideia de que algo se agita como se numa panela tudo estivesse girando. 
Queijo! Essa é a resposta... Eureka – proferiu as palavras gregas como solução para seu embate mental. Somos as bactérias, os organismos que se formaram a partir desse queijo em formação...
Sua felicidade era imensa em conseguir algo tão concreto quanto as ideias da Controladora para ele sem sentido.

Não conseguia se conter com os dias se passando, nessa teoria tudo se encaixava, é claro que ele tinha medo de seu entusiasmo, mas no fundo se sentia tão puro e limpo do que aceitar tudo em mudez eterna que aos poucos foi deixando escapar o motivo de tanta alegria para os demais que já o olhavam com desconfiança de que algo o havia causado a tal felicidade extrema.

Nos tempos da grande Controladora tudo deveria ser moderado e o que fugisse a essa regra primordial deveria ser profundamente investigado. E isso logo lhe causou problemas, pois esconder algo tão humanamente verdadeiro era quase impossível visto que seus olhos brilhavam e exaltavam seu conhecimento muito mais abrangente do que a Detentora da verdade.

Ao ser pego numa noite de lua cheia foi logo acusado de bruxaria visto que livros profanos foram encontrados nos aposentos mais secretos de seu lar humilde. Sentiu-se caçado e de fato era a caça da vez. Muitos já estavam nessa triste situação por muito menos. Com ele não seria diferente.

No entanto, sentia-se ainda assim feliz por pensar além dos moldes impostos. Pensar para ele era algo que valeria até a pena do morrer queimado em público: o que de fato aconteceu logo após o terrível julgamento seguido por diversos acusadores que o chamavam de bruxo com palavras torpes mesmo com sua antiga ajuda pela vizinhança agora esquecida de suas benesses.

Foi em imensas labaredas que vislumbrou o queijo queimando como em churrasco sendo derretido para se unir ao Todo lácteo que havia visualizado em seus pensamentos.

A grande Controladora vencia assim mais uma vez os pensares vis que ousavam questionar a Suprema Verdade dos fatos.

Andreia Cunha









Sugestão de leitura: o queijo e os vermes de Carlo Ginzburg.
Andreia Cunha

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