Ao nascer, encantadora criatura surgia. Bela e graciosa,
porém cega. Os pais não notaram logo de cara. Foi aos poucos que a falta de
visão foi ficando evidente.
Tristes,desconsolados em sentimentos, os pais tentavam
contornar a dor balbuciando palavras ligadas ao Divino: Ele sabe o que faz...
Fato, no entanto, era que a deliciosa criaturinha era feliz
no seu jeito de ser. Menina em sua menina ausente dos olhos. Isso não era
problema. Aos poucos percebia ser diferente em algum sentido, mas nada lhe
apagava a doçura.
Ouvia as vozes e via as pessoas por meio delas. As vozes lhe
traziam sempre a imagem real de seu ausente ponto de vista ocular. Pois, ela
enxergava a alma. Era a alma que ouvia e a fazia ver o inverso do que olhos,
doentes pelo tanto ver, não conseguiam captar.
Certa vez, deparou-se com uma mulher mais velha, a voz
aparentemente não denunciava a idade. Voz menina em corpo maduro. O que
evidenciava alguma incompatibilidade era o mau humor sempre constante naquele
ser.
A menina, a princípio, calada ficava na presença da dona da
voz, por não ter ainda uma imagem mental plena do que ouvia. Sabia, porém que
algo não condizia, não se encaixava plenamente. E isso a intrigava.
Era uma parente que ficaria em sua casa por algum tempo
devido à saúde debilitada. Apesar da ranzinzice, ela, menina, gostava de fazer
companhia à mulher madura de voz criança. Um mistério deveria ser desvendado e
as coisas precisavam retomar o curso natural do se ser no mundo.
Numa conversa dessas como quando não se quer nada, surgiu um
papo interessante:
- Sabe, dona moça a senhora tem uma voz tão linda... Eu te
vejo como uma grande menina, pois sei que não tem tamanho para assim ser...
A mulher um tanto sem jeito, pega de surpresa pelo elogio,
tentou disfarçar com um ar de: oras, menina quanta bobeira, deixe isso pra lá...
- Não, dona moça, não é bobeira... Sua voz é menina e sei
que em você ela se esconde nessa aparência mulher escura pela dor.
- Ei, ei, ei que negócio é esse de mulher escura?
- Dona moça, não falo da pele, pois eu nem vejo... Antes de
brigar à toa comigo olhe para mim. Falo escura das dores e dos dissabores que
parecem que te tiraram o gosto pela vida. Sua voz é toda amor e é nela que está
a sua essência.
A mulher ficou meio que sem chão perante a candura da menina
dos olhos. Havia algo nela que a fazia ver mais que aos outros ditos sadios dos
olhos. Suas meninas dos olhos eram verdadeiras meninas transpostas na figura
menina que ela era no mundo. Maior que a possibilidade de se reter na retina, as
crianças travessas brincavam em todo o seu corpo fazendo-a ver além do que o
humano pode ver.
Seu corpinho todo frágil não se detinha nos olhos,
transpunha as barreiras nas meninas que ocupavam seu espaço de corpo.
Atônita, a mulher antes escura chamada de dona moça,
percebeu-se diferente. Algo havia clareado em si. Uma nuvem passara e ela
ensolarando-se percebeu que suas dores não eram nada comparada a possibilidade
de uma cura – ou não...
Ver ouvindo sua voz já lhe bastava como vida inteira para
compreender que há muito mais que lamentações e tristezas a serem choradas
pelos olhos onde suas meninas sadias habitavam.
Deu-lhes um sorriso de presente.
Andreia CunhA
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